"A ferrovia é uma das invenções mais extraordinárias da humanidade. A aplicação da força do vapor a uma máquina móvel que circula em um caminho artificial, constituído por duas trilhas de ferro, é o ponto de partida para um novo período da história, em que o homem põe a seu serviço tais elementos, como forças cooperadoras, em suas atividades, na busca incansável de domínio". Douglas Apratto Tenório
Acabo de ler o livro "Capitalismo e Ferrovias no Brasil" escrito pelo historiador alagoano Douglas Apratto Tenório e publicado em 1979. O exemplar que tenho em mãos parece ser anterior a edição da foto ao lado.
O tema trabalhado por Tenório - as estradas de ferro - tem me despertado o interesse e está ligada ao projeto de pesquisa que estou desenvolvendo para o Trabalho de Conclusão de Curso a ser apresentado na Instituição de Ensino Superior onde sou estudante de História.
O livro, escrito há mais de trinta anos, desca-se pelo frescor e pela lucidez como a questão dos transportes é discutida. O autor utiliza como fio condutor o caso particular das ferrovias da então Provincia de Alagoas (emancipada em 1817), para ilustrar a realidade das estradas de ferro no Império Brasileiro e, como a República instaurada no final do século lidará com com um elemento tão importante para os interesses nacionais.
Antes de tudo é preciso ressaltar que a ferrovia é a filha mais ilustre da Revolução Industrial ocorrida na Inglarerra no século XVIII. O aprimoramento da máquina à vapor de James Watt e a utilização desta emparelhada à rodas sobre trilhos, como o fez Georges Stevenson, modificaram definitivamente a maneira do homem se locomover. Até então todas as distâncias percorridas pela humanidade - desde os faraós egípcios até Napoleão - foram percorridas na velocidade de quadrúpedes ou das próprias pernas.
É importante dizer, também, que os caminhos de ferro são um empreendimento capitalista. As relações de produção herdadas do antigo regime feudal cediam lugar as formas modernas de produção e de consumo. Não é por acaso que a primeira ferrovia a funcionar (em setembro de 1830) liga as cidades de Manchester e Liverpool na Inglaterra. Enquanto uma se consolida como polo produtor da industra textil, a outra oferece sua estrutura portuária como suporte para o escoamento dos produtos.
Pouco tempo depois de inaugurado o sistema ferroviário torna-se símbolo de progresso, prosperidade e modernidade. No imaginário coletivo de muitas localidades a ferrovia superaria todos os problemas econômicos e sociais. Foi assim também no Brasil. Embora o regente Diogo Feijó já em 1835 tenha elaborado uma legislação que oferecia concessão para construção de estradas de ferro, a primeira locomotiva no Brasil só entrará em circulação em 1854, numa ousada ação empreendedora dirigida por Irineu Evangelista de Souza - o futuro Barão de Mauá. Este pequenino trecho de 13 km ligando a praia da Estrela a Petrópolis, contudo, é o pontapé inicial para a corrida por conceções ferroviárias no Brasil.
Desde os tempos coloniais os caminhos e estradas no Brasil nunca foram algo que pudesse se tornar um cartão postal. Pelo contrário, o relato de viajantes descrevem as condições sofríveis dos caminhos naturais, cuja a utilização em tempos de chuva punha em risco a vida de quem se aventurasse a trafegar. A concentração urbana desde o descobrimento limitou-se ao litoral, motivo pelo qual o Frei Vicente de Salvador compara o colono a caranguejos, contentados em arranhar as costas.
Conforme nos conta Tenório, o crescimento das ferrovias coincide com o aumento das exportações do café. A crescente demanda pelo produto provocou a busca de novas áreas para o plantio e em consequência disto a ocupação das áreas ociosas do interior do continente. Desta forma os caminhos de ferro surgem como uma solução para escoar a produção da riqueza agrícola, que de outra maneiras não teria como ser transportada, visto os poucos rios navegáveis e a limitação de carga natural do lombo dos escravos. A importância do café para a economia nacional não passa despercebida pelo autor alagoano. Na página 17 ele afirma: "Foi o café, de todos os gêneros brasileiros, aquele cujo crescimento mais influiu na balança exportadora, uma vez que chegou a representar, em certos momentos, percentuais levemente superiores a 50% do valor global das exportações". Esse fato positivo, não deixa, contudo, de revelar a permanencia de uma tradição colonial onde predomida a monocultura, o latifundio e a mão-de-obra escrava.
Após fazer todo um panorama das estruturas (econômicas, sociais e políticas) e das conjunturas regionais e locais o autor se debruça nas disputas internas do Estado alagoano, a reação dos grupos sociais e da imprensa em relação a implantação da primeira ferrovia. Neste ponto ele revela um predomínio dos interesses estrangeiros, em especial ingleses, em detrimento das necessidades reais da província e dos municípios.
Predominam as relações escusas de compadrio e de privilégios que marcam a sociedade brasileira. O historiador ilustra o fato através da poesia popular:
"Não se pesca mai de rede
não se pode mai pescá,
qui já sube da nutiça
que os ingrês comprou o má"
Como toda pesquisa trás consigo uma dívida de gratidão com os que primeiro "trilharam" o caminho, registro aqui o meu reconhecimento de débito com o Professor Douglas Apratto Tenório que com as discussões acima (e muitas outras) forneceu material de qualidade para agregar valor à minha jornada de investigação sobre o universo ferroviário.
Obrigado!